terça-feira, dezembro 05, 2006

Não pensar...


Alice conheceu José Manuel há cinco anos. Durante o primeiro mês foi um romance de livro: encontros com jantares, carícias e esperas à saída do emprego. A meio do segundo mês avançou para a intimidade de uma relação mais profunda e sexualmente activa. O uso do preservativo é obrigatório por todas as razões e em especial para evitar uma gravidez não desejada.
Ao entrar no quarto mês de relacionamento, por já ter começado a tomar a pílula anticoncepcional, começou a pensar ceder aos apelos amorosos de José para deixar de utilizar o preservativo, apesar de estar relutante com receio de apanhar alguma doença, como a SIDA. Aos poucos foi cedendo até que no aniversário de Manuel, lhe deu como presente uma relação sem preservativo.
Foi como que uma novidade, sempre tinha usado o preservativo e agora percebia o que lhe diziam amigas e colegas. Era realmente espantoso não ter entre eles aquele pedaço de látex.
Passado que foi um ano de estar a viver com o José, notou uma infecção vaginal. Foi ao médico que lhe receitou um antibiótico. A infecção passou rapidamente, mas voltou um mês depois. O médico sugeriu-lhe análises mais específicas, incluindo a despistagem do VIH.
Foram duas semanas longas que prejudicaram a sua relação com Manuel José, que não compreendia o porquê da ansiedade e da relutância em ter relações. Na terceira semana foi levantar as análises e no dia seguinte levou-as ao médico.
Não sabia o que o envelope continha, pois este vinha fechado e endereçado ao médico.
O médico repara que Alice tremia e tenta acalmá-la. Lê os resultados escritos na folha. Não a olha nos olhos. Alice fica cada vez mais assustada. O médico fala-lhe de ter de repetir as análises “pois há aqui uns resultados pouco claros e concisos”, diz-lhe.
Voltou um mês depois ao médico. “A Alice está infectada com SIDA”, diz-lhe o médico. Não compreende o que lhe diz, como pode estar infectada se só tem tido um parceiro ao longo deste ano?
O médico tenta acalmá-la e explicar-lhe que existe muita gente nesta situação e que está bem, pois agora existem vários medicamentos e não se morre tão rapidamente.
“E o que vai pensar o José Manuel de mim? E as outras pessoas?” diz Alice. “Quando se souber, todos se vão afastar de mim e vou perder o emprego se souberem disto.”
O médico fala-lhe em levar José Manuel à consulta para fazer testes de despistagem de VIH.
Alice pede ao José Manuel para ir ao médico com ela, pois têm de fazer umas análises em conjunto para saber mais sobre as infecções que ambos têm de vez em quando. José Manuel recusa ir ao médico.
O tempo passa e Alice não o convence a ir à consulta, pelo que resolve contar –lhe a verdade. “És uma porca, de certeza que andaste com outros e apanhaste essa doença. Se calhar também tenho e tudo por causa de ti”. Mais tarde, José lembra-se que em tempos idos teve uma relação esporádica com uma colega que veio a saber que tinha falecido. Aceita ir à consulta com Alice e fazer o teste do VIH. Quinze dias de nervos, ansiedade e medo. Entretanto Alice já tinha sido encaminhada para o Hospital da sua área: o Hospital do Desterro. Sente-se lá bem.
O resultado do José Manuel é positivo. Vai para a mesma consulta de Alice. Neste ano de 2006, souberam que o hospital ia fechar e foram transferidos para o S. José. As condições são péssimas. O atendimento é feito num espaço exíguo. Há camas e pessoas por todo o lado, até nos corredores perto do local da consulta. Muitos deles têm problemas pulmonares. Receiam apanhar uma tuberculose ou pneumonia. Não entendem o fecho do Hospital, até porque as condições pioraram. Ouviram falar de que terão de pagar uma parte dos medicamentos, que passarão a ser distribuídos nas farmácias de rua.
Ficam assustados, pois os seus salários são baixos e dão à medida para o sustento do dia-a-dia. Se tiverem de pagar uma parte dos medicamentos, ficam sem dinheiro para comer.
Ir buscar os medicamentos à farmácia da rua? Nem pensar. Em pouco tempo se saberá que tipo de medicamentos eles levantam e de certeza que irá dar problemas com os vizinhos. Se isso for assim preferem não ir buscar a medicação. Morrem é certo, mas ninguém saberá da sua vida.
Não pensar nisso é a melhor política, pois não há alternativa a esta solução…
É melhor não tomar a medicação, a ficar exposto à discriminação, só porque alguém na política acha que ficamos caros ao estado, em medicamentos, esperem para ver quando começarmos a ficar internados meses seguidos…
Não pensar no que vai acontecer no futuro é a prática neste país, só se pensa a curto prazo.
Contrariamente a Descartes, nós dizemos: “ não pensamos logo não existimos”.
Será que só iremos começar a pensar e a actuar quando como em Moçambique, quatro em cada cinco mulheres estiverem infectadas pelo VIH?
“É melhor não pensar nisso, depois logo se vê”- solução portuguesa para muitas coisas. Não pensar…

7 comentários:

Anónimo disse...

Tu és fantástico, mas já devias saber isso...

125_azul disse...

Até aposto que o médico quando fez os testes à Alice não optou pelo consentimento informado... é que é de certeza! A juntar ao resto...é à Portuguesa, pois claro. Beijinhos para ti e para a Maria, que não tem blog mas visita e deixa miminhos.

AEnima disse...

Posso reproduzir este teu texto??? Please??? Beijinho

vih disse...

claro que pode tirar este texto Aenima, é uma honra. este texto saiu no DN, do dia 1 de Dezembro, revista extra sobre saúde.

Ck in UK disse...

Deixas-te me sem palavras.E essa historia deve ser tao comum....

Ck in UK disse...

Deixas-te me sem palavras.E essa historia deve ser tao comum....

AEnima disse...

oh vih, eu fui fazer o teste hoje e descobri um novo aparelhinho muito facil mesmo para as pessoas testarem. Ja existe em portugal? Pus uma foto na no meu blog hoje. E o teu texto, copiei mesmo antes da tua autorizacao, desculpa la, esta num post anterior :) Beijocas